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253 FORMALISMO, INSTRUMENTALISMO E FORMALISMO-VALORATIVO FORMALISM, INSTRUMENTALISM, AND EVALUATIVE FORMALISM Claudio Penedo Madureira* RESUMO: O objetivo deste artigo é induzir a compreensão de que o Código de Processo Civil de 2015 adota as premissas teóricas e as técnicas de atuação propostas pela doutrina jurídica do formalismo- valorativo (tal como concebida pela escola processual gaúcha sob a liderança de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira), instituindo, assim, uma nova fase metodológica ao processo civil; que, por sua vez, substituiu o instrumentalismo (doutrina jurídica concebida pela escola processual paulista a partir dos escritos de Cândido Rangel Dinamarco), que teve fundamental importância para o desenvolvimento do Direito Processual Civil Brasileiro, porque possibilitou a superação da chamada fase autonomista, inaugurando, no Brasil, a preocupação de juristas e interpretes (aplicadores) com os resultados do processo; mas que acabou superada pela concepção do novo código de um modelo de processo marcado pela cooperação entre os sujeitos processuais, que se demonstra incompatível com proposta dos instrumentalistas pela atribuição à jurisdição de uma posição central na Teoria do Processo Civil. ABSTRACT: The purpose of this article is to induce the understanding that the 2015 Code of Civil Procedure adopts the theoretical premises and action techniques as proposed by the legal doctrine of evaluative formalism (as conceived by the Procedural School of Rio Grande do Sul under the leadership of Carlos Alberto Alvaro de Oliveira) thereby introducing a new methodological stage to the civil procedure; which, in its turn, replaced instrumentalism (the legal doctrine as conceived by the Procedural School of Sao Paulo from the writings of Candido Rangel Dinamarco), which was of fundamental importance for the development of the Brazilian Civil Procedure Law, because it made possible to overcome the so-called autonomist phase, establishing, in Brazil, the concern of lawyers and interpreters (enforcers) with the results of the case; but it was surpassed by the new code’s conception of a procedural model marked by a cooperation between the parties, which demonstrates to be incompatible with the proposal of the instrumentalists for the allocation of the jurisdiction to a central position in the Theory of Civil Procedure. PALAVRAS-CHAVE: Teoria do Processo Civil. Instrumentalismo. Formalismo-Valorativo. Código de Processo Civil de 2015. Escola Processual Gaúcha. Escola Processual Paulista. KEYWORDS: Theory of Civil Procedure. Instrumentalism. Evaluative Formalism. 2015 Code of Civil Procedure. Procedural School of Rio Grande do Sul. Procedural School of Sao Paulo. SUMÁRIO: Introdução. 1. Notas sobre a Teoria da Instrumentalidade do Processo. 1.1. A jurisdição como elemento central da Teoria do Processo. 1.2. A relativização do binômio direito-processo. 2. O formalismo-valorativo como alternativa ao instrumentalismo. 2.1. A qualificação do processo como um direito fundamental do cidadão. 2.2. A identificação do processo como ambiente de criação do Direito. 2.3. A atribuição ao processo de uma posição central na Teoria. 3. O Código de Processo Civil de 2015 e a inauguração de uma nova fase metodológica no Direito Processual Civil Brasileiro. Conclusão. Referências. INTRODUÇÃO Cândido Rangel Dinamarco divide a história do processo em três fases metodológicas distintas, a fase sincrética, a fase autonomista e a fase instrumentalista1. Daniel Mitidiero sugere divisão similar, também propondo a partição da evolução do processo em três momentos, que seriam o praxismo (correspondente à pré-história processual), o * Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). 1 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 22. 254 processualismo (correspondente à modernidade processual) e o formalismo-valorativo (correspondente à contemporaneidade processual)2-3. É consenso entre os doutrinadores que predominava na primeira fase a noção de que o processo era simples meio de exercício de direitos e de que a ação seria apenas um dos aspectos do direito subjetivo material violado, o qual, uma vez lesado, adquiriria forças para obter em juízo a reparação da lesão sofrida4. Assim, nesse contexto, a ação corresponderia ao “direito material em pé de guerra”5. Mitidiero identifica essa fase, por ele designada como praxismo, com a “caracterização do direito processual civil como direito adjetivo, como algo que só ostentava existência se ligado ao direito substantivo”6. A fase seguinte, dita autonomista, inaugura-se pela compreensão do processo como ramo autônomo do Direito (daí a sua designação, por Mitidiero, como processualismo). Sobre a transição da primeira para a segunda fase metodológica do processo, recobre-se, com José Roberto dos Santos Bedaque, que em meados do século XIX, sobretudo a partir da polêmica entre Windsheid e Muther7, “passaram os juristas a vislumbrar a existência de um direito autônomo de provocar a atividade jurisdicional do Estado”, nascendo, assim, “o conceito moderno de ação”8. Dinamarco assevera que foi nessa fase que “surgiram os grandes tratados e importantíssimas monografias que são do conhecimento geral e serviram para possibilitar o 2 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 17-21. 3 Sobre a argumentação que se segue, cf.: MADUREIRA, Claudio. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 27-34/passim. 4 A propósito, cf., por todos: CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 23. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 48. 5 Cf.: RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito processual civil. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 178. 6 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. op. cit., p. 17. 7 Quanto ao particular, cf. a seguinte passagem da obra de José Roberto dos Santos Bedaque: “Em 1856 travou- se a famosa polêmica entre dois juristas alemães, Bernardo Windscheid, catedrático em Greifswald, e Teodoro Muther, professor em Könisberga, a respeito da actio romana. [...] Para Windscheid, ação significava direito à tutela jurisdicional, decorrente da violação de outro direito. Não era essa, todavia, a noção do direito romano, pois o Corpus Júris previa inúmeras actiones, que não pressupunham a violação de um direito: embora a todo direito corresponda uma ação, a recíproca não é verdadeira. [...] Os romanos viviam sob um sistema de ações, não de direitos. E a razão principal era, além de seu senso prático, o grande poder conferido ao magistrado de decidir até mesmo contra a lei. Importava o que ele dizia, não o que constava do direito objetivo; a pretensão precisava estar amparada por uma actio da pelo magistrado que exercia jurisdição. [...] Segundo Muther, o conceito de ação romana formulado por Windscheid é inexato. Para ele o direito subjetivo é pressuposto da actio. Quando o pretor formulava um edito, estava criando norma geral e abstrata para amparar pretensões. Tal norma, embora não pertencente ao ius civile, lhe era equivalente. Conclui haver coincidência entre a actio romana e a ação moderna” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 25). 8 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo. op. cit., p. 25. 255 uso adequado do instrumental que o direito processual oferece”9. De seu turno, Mitidiero identifica como características marcantes dessa fase a aspiração dos processualistas, forçados que estavam a justificar o direito processual civil como um ramo próprio e autônomo da árvore jurídica, à construção de um instrumento puramente técnico, totalmente alheio a valores em sua intencionalidade operacional, à eliminação da disciplina processual de todo e qualquer resíduo de direito material e à retirada do problema da justiça do plano do processo, em favor da aplicação de uma racionalidade jurídica e técnica, colocando-se em seu lugar o problema da norma jurídica10. Nesse ponto, o direito processual, anteriormente designado como um direito adjetivo, procura libertar-se do direito material (chamado substantivo), assumindo, assim, a marca do formalismo. Ocorre que semelhante postura autonomista, que soava absolutamente natural e perfeitamente justificável num momento em que se pretendia construir cientificamente métodos objetivos para a resolução dos conflitos individuais, materializou-se num sistema falho na sua missão de produzir justiça11. A premissa que orienta o declínio do processualismo (e do formalismo processual que lhe é correspondente) é a inauguração da preocupação dos interpretes (aplicadores do Direito) com a efetividade da tutela jurisdicional, com os resultados do processo, com sua capacidade de realizar concretamente o ideal de justiça. Nessa conjuntura, o processo passou a ser analisado sob um ponto de vista externo (e não mais sob a ótica introspectiva que marcou a fase autonomista) e examinado em seus resultados práticos12. Esses são, em apertada síntese, os elementos que singularizam a terceira fase metodológica do processo, que Dinamarco convencionou chamar fase instrumentalista e que num primeiro momento foi designada por Mitidiero como formalismo-valorativo. Tratam-se, pois, o instrumentalismo e o formalismo-valorativo, de proposições teóricas concebidas, no contexto da superação do formalismo característico da fase autonomista do Direito Processual Civil Brasileiro, com o propósito de possibilitar a realização da justiça no processo, mas que procuram atingir essa finalidade por meio da aplicação de técnicas claramente distintas, exatamente porque partem, uma e outra doutrina jurídica, de 9 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 19. 10 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. op. cit., p. 19. 11 CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. op. cit., p. 49. 12 CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. op. cit., p. 49. 256 compreensões igualmente dessemelhantes sobre qual seria o verdadeiro papel da atividade cognitiva desenvolvida pelos intérpretes no campo da aplicação do Direito. Atento a essa peculiaridade da conformação das teorias, Mitidiero designou o formalismo-valorativo, em trabalho mais recente, como uma quarta fase metodológica, que viria a substituir o instrumentalismo. Em suas próprias palavras: “[...] como o novo se perfaz afirmando-se contrariamente ao estabelecido, confrontando-o, parece-nos, haja vista o exposto, que o processo civil brasileiro já está a passar por uma quarta fase metodológica, superada a fase instrumentalista. Com efeito, da instrumentalidade passa-se ao formalismo-valorativo, que ora se assume como um verdadeiro método de pensamento e programa de reforma de nosso processo. Trata-se de uma nova visão metodológica, uma nova maneira de pensar o direito processual civil, fruto de nossa evolução cultural”13. Posto isso, e considerando que o Código de Processo Civil de 2015 (recentemente editado) também parece propor uma nova modelagem para o direito processual, é relevante investigar, inclusive com o propósito de checar a validade dessa observação de Mitidiero, se o legislador, quando o concebeu, aderiu às premissas teóricas e às técnicas de atuação propostas pelo instrumentalismo, ou se assimilou, nesse contexto, as premissas e técnicas adotadas pelo formalismo-valorativo. Para tanto, partir-se-á da descrição da realização do Direito sob a ótica dessas duas construções teóricas fundamentais desenvolvidas pelas escolas processuais paulista e gaúcha (abordadas nos dois primeiros capítulos), para depois procurar identificar, no texto do novo código processual, elementos que possam induzir a compreensão de que o legislador efetivamente adotou como marco teórico o formalismo-valorativo, inaugurando, assim, uma quarta fase metodológica do processo (explicitados no terceiro e último capítulo). 1 NOTAS SOBRE A TEORIA DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO O instrumentalismo ganha corpo entre nós a partir da década de oitenta do século passado14, quando se deu a publicação da obra “A instrumentalidade do processo”, de 13 MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 47. 14 Conforme informação colhida do currículo lattes de Dinamarco (disponível na Internet, no endereço <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4727823T9>; acesso em 13/04/2009), “A instrumentalidade do processo” foi publicada originariamente em 1986. 257 Cândido Rangel Dinamarco15-16. A perspectiva metodológica instrumentalista, concebida na esteira da identificação dos escopos sociais e políticos do processo, inaugura (ou, quando menos, renova) a preocupação teórica com os resultados do processo, com a sua capacidade não apenas de propiciar aos litigantes a atuação concreta do direito material (escopo jurídico), mas, também, de servir de instrumento de pacificação social (escopo social) e garantidor da participação dos indivíduos nos destinos da sociedade (escopo político)17. Nessa perspectiva, o processo passa a ser encarado não mais como simples elo de ligação (interface) entre o direito abstrato desatendido (direito positivo) e o direito concreto realizado (direito subjetivo), assumindo uma dimensão ampliada, de instrumento voltado para fora do sistema, que tem por objetivo primordial a entrega de uma prestação jurisdicional adequada, tendente à realização do ideal de justiça. O ponto central das construções teóricas decorrentes do instrumentalismo está na conscientização de que o processo deve ser descrito não mais como mero instrumento técnico a serviço da ordem jurídica, mas, acima disso, como um poderoso instrumento ético, destinado a servir à sociedade e ao Estado18. Somente sob essa perspectiva é que se poderá assegurar ao jurisdicionado o desfecho descrito por Marcelo Abelha Rodrigues como finalidade essencial do processo, que consiste, precisamente, na sua capacidade de “servir de instrumento de modo que, ao seu final, seja possível olhar para trás e dizer: foi dada a razão a quem a tinha, trazendo uma pacificação ao conflito”19. Esse objetivo nunca saiu das mentes dos juristas (que operam no plano da Ciência) e dos intérpretes (que se ocupam da aplicação do Direito). Em rigor, o problema que atualmente se coloca tem natureza distinta e decorre da circunstância de o processo e seus institutos terem sido desenvolvidos sob premissas autonomistas que, embora perfeitamente adequadas a um dado contexto histórico, com o correr dos anos mostraram-se ineficazes à solução das dificuldades cotidianas da realização do Direito e da justiça. Com efeito, dia após dia juristas e intérpretes (aplicadores) são chamados a testemunhar que o formalismo característico das 15 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit. 16 Sobre a argumentação que se segue, cf.: MADUREIRA, Claudio. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça. op. cit., p. 35-36/passim. 17 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 270. 18 CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. op. cit., p. 51. 19 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação Civil Pública e meio ambiente. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 05. 258 premissas autonomistas que outrora orientaram a construção da Teoria do Processo não poucas vezes impede a plena realização do direito material deduzido em juízo, ensejando injustiças. 1.1. A jurisdição como elemento central da Teoria O mérito da teoria da instrumentalidade do processo reside na identificação de metodologia adequada a compatibilizar o direito processual ao direito material20. Dinamarco, quando discorre sobre os escopos do processo e, sobretudo, quando identifica a existência de escopos não-jurídicos, de natureza social e política, faz uma reavaliação da Teoria do Processo21. E, nesse exercício teórico, permite-se analisar o processo sob a ótica externa dos seus resultados, chegando à conclusão de que a Teoria deve ter como elemento central, não a ação22 ou o processo23, mas a jurisdição24. A premissa adotada pelo instrumentalismo é a de que, para compatibilizar os escopos jurídico, social e político do processo e, por conseguinte, para realizar a justiça, cumpre aos juízes conformar o processo às exigências do direito material encartado nos textos legais, com vistas à sua efetiva realização. Essa perspectiva metodológica reflete uma mudança de enfoque na avaliação dos objetivos do processo, proporcionada pelo deslocamento da jurisdição para a posição central antes ocupada pela ação na Teoria do Processo, que permitiu 20 Sobre a argumentação que se segue, cf.: MADUREIRA, Claudio. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça. op. cit., p. 36-38/passim. 21 Na precisa observação de Dinamarco, “a força das tendências metodológicas do direito processual civil na atualidade dirige-se com grande intensidade para a efetividade do processo, a qual constitui expressão resumida a ideia de que o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-político-jurídica, atingindo em toda plenitude todos os seus escopos institucionais” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 270). 22 Não pode ser a ação por causa da perspectiva publicista do processo. Segundo Dinamarco, para quem, preocupação central com a ação é sinal da visão privatista do sistema processual, “a ciência dos processualistas de formação latina apresenta a ação como pórtico de todo o sistema, traindo com isso a superada idéia (que, conscientemente, costuma ser negada) do processo e da jurisdição voltados ao escopo de tutelar direitos subjetivos” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 45-46). 23 Não pode ser o processo porque “dentro de um sistema que em si mesmo é instrumental, ele é o instrumento por excelência ao exercício de uma função que também está a serviço de certos objetivos (exteriores ao sistema)”. Demais disso, “o processo em si próprio, como conjunto ou modelo de atos, traz profunda e indisfarçável marca de formalismo”. Assim, “colocar como pólo principal do sistema esse instituto assim marcadamente formal e potencialmente instrumental conduziria aos extremos de incluir na teoria geral áreas jurídicas até onde não chega a utilidade desta (e sem qualquer proveito para a boa compreensão das diversas espécies de direito processual)” (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 79). 24 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 81. 259 ampliar o campo de visão do fenômeno processual, fazendo renascer o interesse pelo estudo da tutela jurisdicional, instituto de suma importância na fase sincrética, mas que havia sido deixado de lado durante o período autonomista25. 1.2. A relativização do binômio direito-processo Vê-se, pois, que o instrumentalismo comporta uma singela, mas contundente, revisitação da perspectiva sincrética26, que resulta no que em doutrina se convencionou chamar relativização do binômio direito-processo27. Conforme leciona José Roberto dos Santos Bedaque “essa ‘revisitação’ requer nova análise interna do sistema processual, para adaptá-la às necessidades externas”, bem como a “consciência de que os institutos processuais são concebidos à luz do direito material”, o que permite concluir que “a distância entre direito e processo é muito menor do que se imaginava e que a reaproximação de ambos não compromete a autonomia da Ciência Processual”28. Também Geovany Cardoso Jeveaux reporta-se ao íntimo relacionamento entre direito e processo quando observa, em doutrina, que “o direito material funciona como ponto de partida para o direito processual, no sentido de não se pensar o processo em direção ao direito material, mas, bem ao contrário, pensar-se do direito material para o direito processual”29. Conquanto não se afeiçoe à doutrina do instrumentalismo30, Jeveaux procura demonstrar, a partir de exemplos práticos31, a interdependência do direito processual em relação ao direito 25 Quanto a isso, Bedaque acentua que “o estudo da tutela jurisdicional revela o fim da fase autonomista do direito processual” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo. op. cit., p. 164). 26 Sobre a argumentação que se segue, cf.: MADUREIRA, Claudio. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça. op. cit., p. 38-46/passim. 27 A propósito, cf.: DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 272; e BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo. op. cit., p. 13. 28 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo. op. cit., p. 14-15. 29 JEVEAUX, Geovany Cardoso. As relações entre o direito material e o direito processual. In: MAZZEI, Rodrigo. Questões processuais do Novo Código Civil. Barueri: Minha Editora; Vitória: Instituto Capixaba de Estudos; 2006, p. 07. 30 Em suas próprias palavras: “Essa pugna hegemônica entre correntes do direito processual contribui para obscurecer a noção de instrumentalidade, ao mesmo tempo em que a torna um pseudo-sinônimo para a desformalização do direito processual e para a sua maior proximidade do direito material, no sentido da sua realização prática. Trata-se de uma falsa promessa teorizar sobre o processo como um instrumento do direito material, e, portanto, torná-lo inacessível à comunidade acadêmica e mesmo incompreensível no sentido cognitivo do termo, mediante o emprego de teorias abstratas que mais confundem do que explicam” (JEVEAUX, Geovany Cardoso. As relações entre o direito material e o direito processual. op. cit., p. 02). 31 Jeveaux enuncia “três exemplos paradigmáticos que chamam a atenção para a proximidade entre o direito material e o direito processual e que exigem conhecimento do primeiro para se chegar ao real sentido do 260 material, para dispor, em arremate, que “é preciso, cada vez mais, chamar a atenção para a importância do direito material como base do ensino jurídico, a fim de que os acadêmicos do curso de direito não se transformem em formalistas que ignoram o direito subjetivo material”32. Disso resulta, a compreensão, expressada por Dinamarco, de que a autonomia (do processo) não deve ser confundida com isolamento, pois “o processo e o direito completam-se e a boa compreensão de um exige o suficiente conhecimento do outro”33. Destarte, se o direito material “é constituído por um conjunto de normas destinadas a regular conflitos de interesses, de natureza individual ou coletiva, determinando qual deve prevalecer”, e se é verdade que o direito processual “é formado por regras cuja finalidade é garantir que a norma substancial seja atuada, mesmo quando o destinatário não o faça espontaneamente”34, a relativização do binômio direito-processo, compreendida como esforço dos julgadores para promover a flexibilização do formalismo processual com vistas à realização do direito material deduzido em juízo, apresenta-se, sob certa ótica, como tecnologia capaz de induzir o acesso dos jurisdicionados a uma ordem jurídica justa. Assim, o prognóstico dos instrumentalistas para assegurar a realização, no processo, do Direito e da justiça assenta-se na necessidade de que os juízes (consequência da atribuição à jurisdição de uma posição central na Teoria do Processo) promovam uma reaproximação entre o direito processual e o direito material (consequência da relativização do binômio direito-processo), de modo a que, nos casos concretos, as formalidades processuais não impeçam a consecução desse objetivo. 2 O FORMALISMO-VALORATIVO COMO ALTERNATIVA AO INSTRUMENTALISMO segundo” (JEVEAUX, Geovany Cardoso. As relações entre o direito material e o direito processual. op. cit., p. 08), tratando, com esse propósito, dos direitos adquiridos processuais (JEVEAUX, Geovany Cardoso. As relações entre o direito material e o direito processual. op. cit., p. 09-14/passim), da decadência, prescrição, perempção e preclusão (JEVEAUX, Geovany Cardoso. As relações entre o direito material e o direito processual. op. cit., p. 14-15/passim) e da influência da teoria das obrigações no processo (JEVEAUX, Geovany Cardoso. As relações entre o direito material e o direito processual. op. cit., p. 15-21/passim). 32 JEVEAUX, Geovany Cardoso. As relações entre o direito material e o direito processual. op. cit., p. 21. 33 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 272. 34 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo. op. cit., p. 11. 261 A opção metodológica por atribuir à jurisdição uma posição central na Teoria do Processo (caractere fundamental do instrumentalismo) é objeto de crítica contundente dirigida à “Teoria da Instrumentalidade do Processo”, pautada na afirmação de que, adotada essa premissa, não existiriam mecanismos adequados ao controle da atividade jurisdicional35. O que se dá é que o instrumentalismo, quando privilegia a jurisdição em detrimento da ação e do processo, concebe e avaliza a conformação de uma relação assimétrica entre o juiz e as partes, conferindo ao julgador posição de superioridade no processo, o que abre campo, por um lado, para a prolação de decisões judiciais arbitrárias e, por outro, para que a parte sucumbente prossiga questionando a justiça da decisão proferida mesmo após o encerramento das discussões no ambiente processual. Não se questiona que a realização da justiça insere-se entre os anseios do instrumentalismo, que inaugura, enquanto proposição teórica, a preocupação dos processualistas brasileiros com os resultados do processo, assim como com a entrega de uma prestação jurisdicional efetiva e adequada. Aliás, é preciso que se diga, por questão de justiça, que foi a partir desse zelo dos instrumentalistas com os resultados do processo que se fomentaram as condições necessárias para a virada de paradigma que pôs a termo entre nós a fase autonomista do desenvolvimento do direito processual. Contudo, o instrumentalismo, quando coloca a jurisdição ao centro da Teoria, parece circunscrever o papel dos juízes à realização no processo um direito material pré-existente36, e por isso parece assimilar a 35 Sobre a argumentação que se segue, cf.: MADUREIRA, Claudio. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça. op. cit., p. 57-67/passim. 36 Ao ensejo, Hermes Zaneti Júnior alude a uma tomada de posição de Dinamarco, assim como de grande parte dos juristas de tradição romano-germânica, pela teoria dualista (capitaneada por Chiovenda, em que se identificam dois planos bem distintos, o do direito material e o do direito processual, e onde prevalece a compreensão de que a sentença apenas revela “direitos”), com a consequente rejeição à teoria monista ou unitária (capitaneada por Carnelutti e que seria caracterizada por uma fusão entre processo e direito material em uma só unidade, sendo a produção de direitos subjetivos, obrigações e concretas relações jurídicas obra da sentença judicial) (ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo Constitucional do Processo Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 229). O problema é descrito por Zaneti nesta outra passagem de sua obra: “Infelizmente, contudo, com o mesmo brilhantismo com que Dinamarco defende a utilização da ‘técnica jurídica a serviço dos objetivos políticos e sociais’ (Ibidem, p. 151), afasta completamente a atividade criativa do juiz, ao afirmar que ‘excluída a integração do sistema processual no lavor de criação das situações jurídicas de direito material e tendo-se por demonstrada a tese dualista do ordenamento jurídico [direito material/direito processual], chega-se com naturalidade ao reconhecimento de que o escopo jurídico da jurisdição não é a ‘composição das lides’, ou seja, o estabelecimento da regra que disciplina e da solução em cada uma delas em concreto; a regra do caso concreto já existia antes, perfeita e acabada, interessando agora dar- lhe efetividade, ou seja, promover sua atuação’ (Ibidem, p. 209)” (ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo Constitucional do Processo Civil Brasileiro. op. cit., p. 138, nota de rodapé). 262 acepção de justiça própria do pensamento positivista37, de inspiração liberal-burguesa, segundo a qual justo seria tudo quanto estivesse impresso nos textos legais38. Nesse ponto se situa a crítica de José Joaquim Calmon de Passos, para quem “o modismo da ‘instrumentalidade do processo’ camufla [...] equívoco a ser corrigido”39, pois antes de o direito condicionar o processo, é o processo que condiciona o direito40. Afinal, conforme leciona Antônio Adonias Aguiar Bastos, o processo, conquanto deva propiciar a solução de conflitos e a efetivação do direito material, não é apenas um instrumento para dizer o direito material, que somente acontecerá (leia-se: será produzido) “no processo e pelo processo judicial”, visto que nele (processo) é que será criado o direito do caso concreto, o que faz com ele (processo) se apresente como elemento integrativo do Direito41. Disso resulta a observação de Bastos quanto a ser “inconcebível a ideia de que, existindo as regras de direito material no ordenamento jurídico, o juiz simplesmente utilizaria um método para verificar se tais normas de direito material incidem sobre um dado caso concreto”, de modo a dizer um direito “que já seria pré-existente ao momento processual, como se estivesse ‘entificado’, como se fosse uma coisa dada por si mesmo”, pois é “impróprio acreditar que o processo judicial é o método pelo qual o juiz (intérprete-aplicador) alcançará a verdade, dizendo a solução jurídica previamente existente para o caso concreto, como se a atividade processual não interferisse e não integrasse o próprio objeto do litígio”42, como parecem defender os instrumentalistas brasileiros. O que ocorre na prática é que o julgador, quando 37 É o que se infere da seguinte síntese descritiva do instrumentalismo, construída por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira: “[...] o processo passa a ser encarado como instrumento de realização do direito material. Ainda se verifica o predomínio do positivismo, embora outras concepções do mundo jurídico comecem a surgir aqui e ali. O juiz passa a ser ativo. Prepondera o enfoque técnico e o único valor ressaltado pelos processualistas, mesmo assim, apenas a partir dos anos 70 do século XX, é o da efetividade. O direito constitucional, embora já objeto de alguma elaboração doutrinária, não é colocado em lugar de destaque, geralmente é compreendido tão-somente na ótica das garantias, vale dizer como noção fechada, de pouca mobilidade, visualizada mais como salvaguarda do cidadão contra o arbítrio estatal” (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil. 3. ed. São Paulo Saraiva, 2009, p. 02-03). 38 Norberto Bobbio refere, em sua obra, a essa versão extremista do positivismo, segundo a qual o direito é sempre justo, por si mesmo, pelo simples fato de ser válido (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução e notas de Márcio Pugliese, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 230). 39 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de Processo. n. 102, ano 26, abril/junho 2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 57. 40 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal, cit., p. 57. 41 BASTOS, Antônio Adonias Aguiar. Uma análise fenomenológica do processo: crítica à teoria da instrumentalidade. Anais do XIV Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 01-02. 42 BASTOS, Antônio Adonias Aguiar. Uma análise fenomenológica do processo: crítica à teoria da instrumentalidade. op. cit., p. 10. 263 forma a sua compreensão sobre o objeto litigioso (atividade intelectiva que invariavelmente é afetada pelas especificidades do ambiente fático que emoldura a contenda e também pelos valores que compõem a sua formação cultural43), “cria uma norma jurídica (sentença) que operará seus efeitos, só aí produzindo conteúdo, anteriormente inexistente”44. Nessa perspectiva, o magistrado, como interprete, opera a reconstrução do direito positivado nos textos legais (pretensão de correção45), com vistas à justa aplicação do Direito, o que impõe a observância no curso do processo de “rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos - agentes, organização e procedimentos -, sob pena de se privilegiar o arbítrio dos decisores”, como arremata Calmon de Passos46. Essas premissas foram assumidas pelo formalismo-valorativo, construção teórica singular concebida no seio da escola processual gaúcha sob a liderança de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira47 e que ainda se encontra em franco desenvolvimento48, cujo objetivo, nas palavras desse professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é “analisar a antinomia existente entre formalismo e justiça, buscando dar solução a esse aflitivo problema que assola o direito processual”49. O formalismo-valorativo distingue-se do instrumentalismo por se designar como formalismo, quando coloca o processo (e não a jurisdição) ao centro da Teoria, como técnica adequada a induzir a proteção dos jurisdicionados contra o arbítrio dos julgadores; e por pretender ser valorativo, quando assume que a atividade cognitiva 43 Quanto a isso, cf.: REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998; REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Saraiva, 1968; SICHES, Luís Recasens. Introducción al estúdio del derecho. 16. ed. México, D.F.: Editorial Porrúa S.A., 2009; e MADUREIRA, Claudio. Recasens Siches e a aplicação do direito a partir da interação entre norma, fato e valor. Derecho y Cambio Social. n. 40, abr.-2015. Disponível em: <http://www.derechoycambiosocial.com/revista040/RECASENS_SICHES_E_A_APLICACAO_DO_DIREITO. pdf>; acesso em 24 de setembro de 2015). 44 BASTOS, Antônio Adonias Aguiar. Uma análise fenomenológica do processo: crítica à teoria da instrumentalidade. op. cit., p. 10. 45 Cf.: ALEXY, Robert. A institucionalização da razão. In: ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 21. 46 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. op. cit., p. 57. 47 A propósito, Zaneti relata que a expressão formalismo-valorativo foi cunhada por Alvaro de Oliveira em aula do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no ano de 2004 (ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo Constitucional do Processo Civil Brasileiro. op. cit., p. 44/Nota de rodapé). 48 Ao que nos convida Alberto Alvaro de Oliveira, quando afirma ser “preciso repensar o problema como um todo, verificar as vertentes políticas, culturais e axiológicas dos fatores condicionantes e determinantes da estruturação e organização do processo, estabelecer enfim os fundamentos do formalismo-valorativo” (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. O Formalismo-valorativo no confronto com o Formalismo excessivo. Cadernos de direito processual – PPGDIR-UFES, v. 2. p. 17). 49 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. O Formalismo-valorativo no confronto com o Formalismo excessivo. op. cit., p. 13 264 desenvolvida no ambiente processual se destina à reconstrução do direito positivo pelos intérpretes/aplicadores (inclusive mediante a consideração de elementos axiológicos) e por isso identifica o processo como direito fundamental do cidadão e como ambiente de criação do Direito. 2.1 A qualificação do processo como um direito fundamental do cidadão O formalismo-valorativo qualifica o processo como um direito do cidadão, o que faz incidir sobre as normas que o disciplinam o regime jurídico dos direitos fundamentais50. Disso resulta a observação de seus adeptos quanto a existir um direito fundamental do jurisdicionado ao processo justo51. Semelhante aspiração teórica é compartilhada pelos instrumentalistas, que também se propõem a induzir a realização da justiça no processo. A rigor, a distinção entre as teorias é de perspectiva. O cumprimento dessa expectativa, sob a tecnologia instrumentalista, restringe-se ao campo da flexibilização do formalismo processual em favor da realização de um direito material pré-existente (ou da aplicação justa do direito positivo), não abarcando, assim, considerações sobre a justa aplicação do Direito (ou sobre a aplicação de um Direito justo). Aliás, o instrumentalismo, precisamente porque tenciona realizar a justiça sob viés exclusivamente procedimental, encontra dificuldades para concretizar esse objetivo, visto que, na medida em que se dedica a tornar efetivo o direito positivo, apenas pode pretender realiza- la quando forem justos os textos legais aplicados. Ao ensejo, não é demais recobrar que a efetividade do direito positivo e a realização da justiça não necessariamente andam juntas, como se viu (para citar um exemplo bastante contundente) no regime jurídico nazista (cuja incidência propiciou, entre outras barbaridades, a perseguição ao povo judeu e o ideal de purificação da raça ariana), que era muito efetivo, mas nada justo. Destarte, somente se fossem justas todas as leis editadas pelo Parlamento e, ainda assim, se justa fosse a sua aplicação a todas as contendas que emergem das relações sociais e culturais que compõem o 50 Sobre a argumentação que se segue, cf.: MADUREIRA, Claudio. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça. op. cit., p. 77-79/passim. 51 Cf.: ZANETI JR. Hermes. Processo Constitucional: O modelo Constitucional do Processo Civil Brasileiro. op. cit., p. 44. 265 mundo da vida (o que é desmentido pela experiência cotidiana) é que se poderia cogitar da realização da justiça sob a tecnologia instrumentalista. O formalismo-valorativo, por sua vez, sustenta que o Direito é construído (criado) no contexto da aplicação dos textos normativos aos casos concretos, mormente no processo judicial (do que resulta a identificação do processo como ambiente de criação do Direito), sob a mediação do formalismo que lhe é característico (do que resulta a atribuição ao processo - e não à jurisdição - de uma posição central na Teoria). Esses serão os objetos das considerações tecidas nos tópicos subsequentes. 2.2 A identificação do processo como ambiente de criação do Direito A segunda nota distintiva entre as teorias reside na circunstância de o formalismo- valorativo encarar o processo como ambiente de criação do Direito, assumindo, assim, acepção de justiça potencialmente distinta daquela adotada pela “Teoria da Instrumentalidade do Processo”52. A tecnologia empregada pelos formalistas-valorativos é ilustrada pela “Teoria Circular dos Planos”53, segundo a qual, na observação de Daniel Mitidiero em referência à obra de Hermes Zaneti Júnior, “o processo deve partir do direito material, da realidade substancial, e ao direito material deve voltar”54. Nessa perspectiva, “o processo devolve (sempre) algo diverso do direito material afirmado pelo autor, na inicial, algo que por sua vez é diverso mesmo da norma expressa do direito material positivado”, de maneira “que entre o processo e o direito material ocorre uma relação circular”, segundo a qual “o processo serve ao direito material, mas para que lhe sirva é necessário que seja servido por ele”55. Disso resulta, “que o direito processual é essencial ao direito material, assim como esse é igualmente fundamental àquele”56. Afinal, “sem o direito material, o processo civil 52 Sobre a argumentação que se segue, cf.: MADUREIRA, Claudio. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça. op. cit., p. 79-87/passim. 53 Inicialmente designada por Zaneti como “Teoria da Relação Circular” (ZANETI JÚNIOR, Hermes. Direito material e direito processual: relações e perspectivas. Revista Processo e Constituição – Coleção Galeno Lacerda de Estudos de Direito Constitucional, 2004, p. 248). 54 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. op. cit., p. 70. 55 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. op. cit., p. 204-205. 56 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. op. cit., p. 71. 266 simplesmente não teria função alguma”, enquanto que “sem o direito processual, o direito material não conseguiria superar eventuais crises na sua realização”57-58. A diretriz metodológica que orienta essa proposição teórica é a de que o Direito do caso concreto decorre da atividade cognitiva dos interpretes (aplicadores), que, por sua vez, deve ser fundada em construções jurídicas embasadas no direito positivo, mas adequadamente temperadas no campo da sua aplicação. Afinal, a realização do Direito, conquanto parta da identificação e da seleção dos enunciados prescritivos em tese aplicáveis aos casos concretos, também abarca a interpretação desses textos normativos59. Essa atividade cognitiva pressupõe 57 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. op. cit., p. 71. 58 Sobre o assunto, ler também: AMARAL, Guilherme Rizzo. A polêmica em torno da ação de direito material. Revista de processo e constituição. n. 2, maio/2005. Porto Alegre: UFRGS, 2005, p. 83-100. 59 Norberto Bobbio, em obra dedicada ao estudo do positivismo jurídico, assevera que “interpretar significa remontar do signo (signum) à coisa significada (designatum), isto é, compreender o significado do signo, individualizando a coisa por este indicada” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 212). O que com isso quis dizer o professor italiano é que “a linguagem humana (falada ou escrita) é um complexo de signos” e, assim, exige interpretação, já que “a relação existente entre o signo e a coisa significada (neste caso, entre a palavra e a ideia) não é uma relação necessária, mas puramente convencional, tanto que a mesma ideia pode ser expressa de modos diversos (o mesmo objeto, aliás, é indicado em cada língua com um som diverso)” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 212-213). Daí a sua conclusão quanto a haver um certo desajuste entre a ideia e a palavra, que decorre da circunstância de a ideia ser mais rica, mais complexa, mais articulada do que a palavra utilizada para exprimi-la (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, cit., p. 213). Semelhante observação, conquanto singela, é melhor aclarada no contexto da semiótica, ramo de conhecimento qualificado por Luiz Alberto Warat como teoria geral dos sistemas sígnicos (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 11). O signo, em tal conceituação, é a unidade mínima de comunicação; e é composto por três elementos: o suporte físico, o significado e o significante. Nesse contexto, o suporte físico é designado como a expressão material do signo, o significado como o seu objeto real ou imaginário e o significante como a ideia ou conceito que os intérpretes formam acerca do suporte físico. Se transpusermos esse modelo semiótico para o campo da interpretação e aplicação do Direito, teremos no direito positivo o suporte físico, nas pré-compreensões dos intérpretes acerca da real conformação da norma abstrata em tese aplicável ao caso (direito) ou da conduta humana à qual essa norma em tese se aplica (fato) o seu significado e na norma jurídica (concreta) incidente sobre o caso, então construída, por meio de exercício hermenêutico, a significação que os juristas atribuem ao seu objeto cognoscente (Cf.: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 06-07). Destrinchada, nesses termos, a atividade cognitiva exercida pelos intérpretes com vistas à compreensão do direito positivado dos textos legais, assim como à sua ulterior aplicação, temos que o que Bobbio quis dizer quando referiu à existência de um certo desajuste entre a ideia (significante) e a palavra (suporte físico) foi que o direito colhido dos textos legais não necessariamente coincidirá com o Direito aplicado ao caso concreto. Com efeito, se a significação remonta à ideia (ou conceito) que o intérprete tem do suporte físico analisado (no caso, do direito positivo), e se essa percepção (da significação) é mutável no ambiente cognitivo do direito positivado nos textos legais, em vista da reconstrução dos conceitos jurídicos pelo intérprete, resultado das suas pré-compreensões acerca da norma jurídica em tese aplicável ou da conduta humana à qual ela se aplica (significado), não restam dúvidas de que a norma individual a ser revelada não necessariamente reproduzirá o que resta prescrito nos textos legais. E isso ocorre, quando menos, porque essa ideia (significação) formada pelo interprete acerca do seu objeto de análise (o direito positivo) é claramente influenciada pelas peculiaridades do caso concreto, isto é, porque a atividade do intérprete quando procura no ordenamento jurídico-positivo a norma abstrata capaz de regular o caso submetido à sua avaliação não se dissocia da decomposição do problema apresentado e da identificação, nos fatos, de caracteres e notas capazes de efetivar a ligação do fenômeno aos conceitos. 267 a investigação do real sentido das palavras neles contidas, que se realiza no contexto de uma interpretação contextual (ou sistemática) do ordenamento jurídico, por meio da qual os intérpretes (aplicadores) procuram descobrir o sentido da lei (ou o seu espírito) a partir da sua referência ao direito positivo quando considerado em sua integridade60. No entanto, nesse contexto, também lhes compete investigar, à luz das especificidades do ambiente fático que emoldura a contenda, se a norma (abstrata) em tese aplicável está apta a incidir sobre o caso concreto, podendo chegar, num estágio mais avançado, notadamente quando se cogita da incidência de princípios jurídicos61, à introdução do elemento axiológico nessa sua tarefa interpretativa62, pela via de uma sua referência a valores juridicizados pelo legislador63. Daí a absoluta pertinência da observação de Mitidiero quanto a ser o processo não apenas “um 60 Sobre a interpretação sistemática, Carlos Maximiliano preceitua que ela consiste na comparação do “dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto”, com vistas a que “por umas” se conheça “o espírito das outras” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 6. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1957, p. 164). 61 Quanto a isso, Samuel Meira Brasil Júnior recobra de que Ronald Dworkin foi um dos primeiros autores a procurar estabelecer um critério científico para a distinção entre as regras e os princípios (BRASIL JÚNIOR, Samuel Meira. Justiça, Direito e Processo: a argumentação e o direito processual de resultados justos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 86-87). O objetivo do estudo de Dworkin, segundo Humberto Ávila, era fazer “um ataque geral ao Positivismo (general attack on Positivism), sobretudo no que se refere ao modo aberto de argumentação permitido pela aplicação do que ele viria a definir como princípios (principles)” (ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 28). Ávila leciona que, conforme Dworkin, “as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada (all-or-nothing)”, de maneira que havendo colisão entre elas, uma delas deve ser considerada inválida, ao passo que os princípios “não determinam absolutamente a decisão, mas somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. op. cit., p. 28). Samuel Brasil também refere ao magistério de Robert Alexy, pondo em destaque a circunstância de esse professor alemão haver qualificado os princípios como “mandamentos de otimização (Optimierungsgebote)” (BRASIL JÚNIOR, Samuel Meira. Justiça, Direito e Processo: a argumentação e o direito processual de resultados justos. op. cit., p. 87). Em rigor, Alexy, “partindo das considerações de Dworkin, precisou ainda mais o conceito de princípios”, como expõe Humberto Ávila (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, cit., p. 28). Abstraindo as distinções entre as doutrinas de Dworkin e Alexy, cuja discussão extrapola aos objetivos deste estudo, o fato é que os princípios jurídicos “têm uma idoneidade irradiante que lhes permite <<ligar>> ou cimentar objectivamente todo o sistema”, como disse Canotilho (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1.163), e se qualificam, conforme Miguel Reale, como “enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas” (REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. op. cit., p. 306-307). 62 A propósito, recobro a lição de Humberto Ávila, quando observa que “os valores constituem o aspecto axiológico das normas, na medida em que indicam que algo é bom e, por isso, digno de ser buscado ou preservado”, ao passo que “os princípios constituem o aspecto deontológico dos valores, pois, além de demonstrarem que algo vale a pena ser buscado, determinam que esse estado de coisa deve ser promovido” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. op. cit., p. 95). 63 Sobre o assunto, ler também: MADUREIRA, Claudio. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça, op. cit., p. 117-206/passim. 268 instrumento do direito material”, mas também “um momento constitutivo deste, sendo a atividade jurisdicional sempre e em alguma medida, criativa da normatividade estatal”64. Destarte, sob a ótica do formalismo-valorativo, o direito positivo é reconstruído pelos intérpretes no processo judicial, contexto em que, sob a medição do formalismo, conjugam-se, em um ambiente dialógico, os esforços do julgador e dos contendores no sentido da sua justa aplicação. Eis, então, o cerne da cizânia entre as teorias: se o instrumentalismo apregoa a flexibilização do direito processual como técnica adequada à realização no processo de um direito material pré-existente e, partir dele, do ideal de justiça; para o formalismo-valorativo mesmo o direito material deve ser flexibilizado, no sentido da sua justa aplicação, visto que a efetiva conformação do direito material aplicável aos casos concretos apenas sobressai da sua incidência casuística, mormente no ambiente processual. Assim, o processo civil do formalismo-valorativo não se destina tão-somente à declaração da vontade concreta da lei (ou do direito positivo). Sua tarefa é “ordenar os debates dentro de um procedimento apto a permitir a correta aplicação do Direito (pretensão de correção)”, como adverte Zaneti65; que com isso identifica a perspectiva metodológica do formalismo-valorativo com a teoria do discurso, descrita por Robert Alexy como uma teoria procedimental da correção prática do Direito66; que, por sua vez, deriva da conjugação no processo de discursos práticos reais, que se distinguem “pelo fato de neles [...] ser procurada a resposta a uma questão prática”67. Destarte, para o formalismo-valorativo, a justiça, em vez de identificar-se com o direito positivo (como parecem defender os instrumentalistas brasileiros), sobressai justamente dessa atividade corretiva (ou reconstrutiva) desempenhada pelos intérpretes (aplicadores), visto que, para essa singular doutrina concebida pela escola processual gaúcha, o sentido normativo não está no texto da norma abstrata, mas no próprio intérprete. Vê-se, pois, que o formalismo-valorativo se propõe a pensar o direito a partir do próprio problema, assumindo, assim, uma perspectiva “tópico-retórica”, como defendem em doutrina 64 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. op. cit., p. 72-73. 65 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. op. cit., p. 65. 66 ALEXY, Robert. A institucionalização da razão. op. cit., p. 25. 67 ALEXY, Robert. A institucionalização da razão. op. cit., p. 28-29. 269 Carlos Alberto Alvaro de Oliveira68 e Hermes Zaneti Júnior69-70. A propósito, cumpre referir à lição de Theodor Viehweg, que designa a tópica como uma técnica do pensamento orientada para o problema71, cujo campo de aplicação é exatamente a interpretação, por meio da qual se torna possível ao intérprete, sem violar as antigas formas, descobrir novas possibilidades de compreensão72. Referências semelhantes podem ser extraídas do seguinte trecho da obra de José Joaquim Gomes Canotilho: “O método tópico-problemático, no âmbito do direito constitucional, parte das seguintes premissas: (1) carácter prático da interpretação constitucional, dado que, como toda a interpretação, procura resolver os problemas concretos; (2) carácter aberto, fragmentário ou indeterminado da lei constitucional; (3) preferência pela discussão do problema em virtude da open texture (abertura) das normas constitucionais que não permitam qualquer dedução subsuntiva a partir delas mesmo. A interpretação da constituição reconduzir-se-ia, assim, a um processo aberto de argumentação entre os vários participantes (pluralismo de intérpretes) através da qual se tenta adaptar ou adequar a norma constitucional ao caso concreto. Os aplicadores-interpretadores servem-se de vários tópoi ou ponto de vista, sujeitos à prova das opiniões pró ou contra, a fim de descortinar, dentro das várias possibilidades derivadas da polissemia de sentido do texto constitucional, a interpretação mais convincente para o problema. A tópica seria, assim, uma arte de invenção (inventio) e, como tal, técnica do pensar problemático. Os vários tópicos teriam como função: (i) servir de auxiliar de orientação para o intérprete; (ii) constituir um guia de discussão dos problemas; (iii) permitir a decisão do problema jurídico em discussão”73. Não se nega que Canotilho vê com ressalvas a utilização de uma metódica tópico- problemática no campo da aplicação do Direito. Para esse professor português “a interpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas”, por ser “actividade normativamente vinculada, constituindo a constitutio scripta um limite ineliminável (Hesse) que não admite o sacrifício da primazia da norma em prol da prioridade 68 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (Org.). Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 69 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. op. cit., p. 88. 70 Conforme Zaneti: “o método antigo (tópica) tem a seguinte metodologia: o ponto de partida é formado pelo sensus communis (sentido comum, common sense), que manipula com o verossímil (verossimila), inter-relaciona pontos de vista de acordo com os cânones da tópica retórica, atuando por meio de um tecido de silogismos. Esse tecido de silogismos pode ser denominado epiquirema” (ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. op. cit., p. 85). 71 VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico- científicos. Tradução de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 33. 72 VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico- científicos. op. cit., p. 43-44. 73 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. op. cit., p. 1.211. 270 do problema (F. Müller)”. Canotilho sustenta, então, que mais adequado à concretização dos direitos no Estado Constitucional é o método “hermenêutico-concretizador”, que tem por premissa a “ideia de que a leitura de um texto normativo se inicia pela pré-compreensão do seu sentido através do intérprete”, consistindo em “uma compreensão de sentido, um preenchimento de sentido juridicamente criador, em que o intérprete efectua uma actividade prático-normativa, concretizando a norma para e a partir de uma situação histórica concreta”74. Esse método, em suas próprias palavras: “[...] vem realçar e iluminar vários pressupostos da tarefa interpretativa: (1) os pressupostos subjectivos, dado que o intérprete desempenha um papel criador (pré- compreensão) na tarefa de obtenção do sentido do texto constitucional: (2) os pressupostos objectivos, isto é, o contexto, actuando o intérprete como operador de mediações entre o texto e a situação em que se aplica: (3) relação entre o texto e o contexto com a mediação criadora do intérprete, transformando a interpretação em <<movimento de ir e vir>> (círculo hermenêutico)”75. Semelhante compreensão, entretanto, não se incompatibiliza com a proposição do formalismo-valorativo quanto à adoção de uma racionalidade prática discursiva e do discurso prático do caso especial como instrumento de resolução dos problemas, sobretudo na perspectiva projetada por Zaneti quando dispôs que, nesse contexto, a lei, a dogmática e os precedentes formariam “os catálogos tópicos especiais com que o jurista deve lidar para obter um discurso racional”76. Com efeito, se a divergência identificada por Canotilho entre os métodos “tópico-problemático” e “hermenêutico-concretizador” reside na circunstância de que “o último pressupõe ou admite o primado do problema perante a norma”, ao passo que “o primeiro assenta no pressuposto do primado do texto [...] em face do problema”77, e se, sob a ótica do formalismo-valorativo, a norma jurídica integra, e com posição de destaque, os catálogos tópicos que são consultados pelos intérpretes no contexto da aplicação do Direito, é natural que se conclua que a distinção apontada pelo constitucionalista não impede a consecução dos objetivos da teoria. É que aqui não ocorre, como na hipótese aventada pelo professor português, a desconsideração da norma abstrata na construção da solução aplicada ao problema. Essa solução, conquanto seja construída sob a perspectiva do problema 74 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. op. cit., p. 1.212. 75 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. op. cit., p. 1.212. 76 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. op. cit., p. 88. 77 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. op. cit., p. 1.212. 271 (conforme prevê o método tópico-problemático) e ainda que não seja orientada pela aplicação mecânica de um direito material pré-existente (já que toma em consideração, além das especificidades fáticas do problema, a carga axiológica do regime jurídico, revelada pelo posicionamento da jurisprudência no contexto da resolução de casos semelhantes), tem por pré-condição necessária uma referência do julgador à norma abstrata, que figura, sob a ótica do formalismo-valorativo, como ponto de referência (ou catálogo tópico, para utilizarmos a expressão empregada por Zaneti78) para a aplicação casuística do Direito. O que interessa, a bem da verdade, é que a aplicação do Direito no processo civil do formalismo-valorativo exige um trabalho interpretativo concretizador, cuja base metódica reside na circunstância, descrita por Canotilho com a clareza que lhe é peculiar, de as funções do Estado serem exercidas por órgãos que, segundo a sua estrutura interna, composição e métodos de trabalho, estejam legitimados para tomar decisões eficientes segundo procedimentos justos e para suportar a responsabilidade pelos resultados da sua decisão79. É do contexto dessa atividade interpretativa concretizadora que sobressai a terceira nota distintiva entre o instrumentalismo e o formalismo-valorativo, consistente na identificação do processo, ou do formalismo que lhe é característico, como elemento central da Teoria. 2.3 A atribuição ao processo de uma posição central na Teoria Em franca divergência com o instrumentalismo (que, como visto, atribui à jurisdição uma posição central na Teoria do Processo), o formalismo-valorativo coloca o processo ao centro da Teoria80. Em defesa da posição instrumentalista, Dinamarco sugere que o processo não pode ser designado como elemento central porque ele, “em si próprio, como conjunto ou modelo de atos, traz profunda e indisfarçável marca de formalismo”81. Daí que, para esse professor paulista, “colocar como polo principal do sistema esse instituto assim marcadamente formal e potencialmente instrumental conduziria aos extremos de incluir na teoria geral áreas jurídicas até onde não chega a utilidade desta”82. 78 Cf.: ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. op. cit., p. 88. 79 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. op. cit., p. 1.214-1.215. 80 Sobre a argumentação que se segue, cf.: MADUREIRA, Claudio. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça. op. cit., p. 87-91/passim. 81 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 79. 82 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 79. 272 Essa afirmação de Dinamarco quanto a ser impróprio colocar ao centro da Teoria esse “instituto assim marcadamente formal” claramente desconsidera a distinção entre forma, formalidade e formalismo, que para o formalismo-valorativo tem fundamental importância para a realização no processo do Direito e da justiça. Com efeito, na lição de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, o formalismo (ou forma em sentido amplo) não deve ser confundido com a forma do ato processual individualmente considerado, já que “diz respeito à totalidade formal do processo”, porque compreende “não só a forma, ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, a coordenação de sua atividade, a ordenação do procedimento e a organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais”83. O formalismo visa, então, assegurar a consecução das finalidades do processo, com destaque para a proteção do jurisdicionado contra a prolação das decisões judiciais arbitrárias (e, portanto, injustas) que podem resultar da inclinação teórica (ínsita à identificação da jurisdição como elemento central da Teoria) quanto a competir aos juízes solucionar os litígios sob a ótica introspectiva da sua percepção pessoal sobre os casos julgados, portanto num contexto em que eles (juízes) não estariam obrigados (como decorrência da atribuição ao processo de uma posição central na Teoria) a considerar e efetivamente enfrentar as razões apresentadas pelos litigantes84. 83 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. O Formalismo-valorativo no confronto com o Formalismo excessivo. op. cit., p. 14. 84 A propósito, Daniel Mitidiero acentua que contraditório “não se cinge mais a garantir tão-somente a bilateralidade da instância, antes conferindo direito, tanto ao demandante como ao demandado, de envidar argumentos para influenciar na conformação da decisão judicial” (MITIDIERO, Daniel. Processo civil e Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 37). Assim, para esse professor gaúcho, o contraditório é mais do que uma simples norma de igualdade formal, pois assume “papel central na experiência do processo, cujo resultado não pode ser outro que não um ‘ato de três pessoas’, como um autêntico ambiente democrático e cooperativo” (MITIDIERO, Daniel. Processo civil e Estado Constitucional. op. cit., p. 37-38). Conforme Mitidiero essa acepção renovada do contraditório é resultado da consolidação da “dimensão ativa do caráter fortemente problemático do direito contemporâneo, constatação hoje igualmente corrente, e da complexidade do ordenamento jurídico atual” (MITIDIERO, Daniel. Processo civil e Estado Constitucional. op. cit., p. 37). E induz a compreensão de que a tarefa dos juízes, quanto ao particular, não se exaure na iniciativa de oportunizar às partes uma manifestação no processo, abarcando, também (e principalmente), a imposição a que, na motivação de suas decisões, efetivamente considerem e enfrentem os fundamentos apresentados. Seguindo no raciocínio, tem-se que a extensão e a profundidade da motivação construída pelo magistrado para justificar a sua decisão é também decorrência do princípio do contraditório. Até porque, como expôs Mitidiero, noutro contexto: “Na quadra teórica do formalismo-valorativo, pois, o direito ao contraditório leva à previsão de um dever de debate entre o juiz e as partes a respeito do material recolhido ao longo do processo. Esse dever de debate encontra a sua expressão mais saliente no quando da decisão da causa, haja vista a imprescindibilidade de constar, na fundamentação da sentença, acórdão ou decisão monocrática, o enfrentamento pelo órgão jurisdicional das razões deduzidas pelas partes em seus arrazoados, exigência de todo afeiçoada ao Estado Constitucional, que é necessariamente democrático” (MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. op. cit., p. 135). 273 Disso resulta o equívoco da observação de Dinamarco quanto a ser medida desprovida de utilidade prática a identificação do processo (“esse instituto assim marcadamente formal”) como elemento central da Teoria. A propósito, basta ver que a crítica correntemente dirigida ao instrumentalismo (que impediu, ao longo de todos esses anos, que a teoria da instrumentalidade do processo, a despeito de seus méritos, viesse a ser assimilada por parte considerável dos processualistas brasileiros) insere-se precisamente na circunstância de a atribuição à jurisdição dessa posição central na Teoria do Processo ter o condão de desestimular a instituição de mecanismos adequados ao controle à atividade jurisdicional, porque concebe e avaliza a conformação de uma relação assimétrica entre o juiz e as partes, colocando o julgador em posição de superioridade aos contendores, e deixando-os, assim, desprotegidos contra o arbítrio estatal. Deve estar claro, contudo, que o processo não deve ser encarado, nessa perspectiva, como ato formal e inflexível (forma), mas como formalidade indispensável a regular e orientar o procedimento. Até porque “o processo civil não é fim em si mesmo”, exatamente porque, em seu curso, a “forma serve como garantia, e não amarra da justiça”85, como adverte Hermes Zaneti Júnior. E tal se dá porque o processo funciona, precisamente em razão do formalismo que lhe é característico, como mecanismo de controle da atividade jurisdicional, já que, em seu corpo, instaura-se uma relação dialética entre as partes reciprocamente e entre elas e o Estado-Juiz, no curso da qual o julgador e os contendores conjugam seus esforços no sentido da justa aplicação do Direito, equilíbrio que, segundo Zaneti, só é possível “em um quadro institucional que constrange à ‘disponibilidade para a cooperação’, marcada por ‘regras do jogo’ previamente delimitadas e objetivando resultados não-conceituais, à medida que podem ser aceitos pelos participantes por razões diferentes”86-87. Daí a afirmação, pelos adeptos do formalismo-valorativo, de que um modelo ideal de processo seria aquele em que o magistrado é paritário no diálogo (assumindo, assim, uma postura democrática frente ao processo, o que pressupõe a consideração e o efetivo enfrentamento de todas as razões apresentadas pelas partes em suas manifestações processuais) e assimétrico apenas na decisão (o que significa dizer que o magistrado, após 85 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo Constitucional do Processo Civil Brasileiro. op. cit., p. 49. 86 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo Constitucional do Processo Civil Brasileiro. op. cit., p. 168. 87 Sobre o assunto, ler também: MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. op. cit. 274 considerar as razões apresentadas por uma e outra parte, deverá apresentar uma solução para o litígio)88, ambiente dialógico que além de prevenir o arbítrio estatal no campo da aplicação do Direito, fomenta as condições necessárias a que as partes reconheçam a justeza da decisão prolatada, o que converte o processo, sob a mediação do formalismo que lhe é característico, em um verdadeiro instrumento da justiça89. 3 O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 E A INAUGURAÇÃO DE UMA NOVA FASE METODOLÓGICA NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO O Código de Processo Civil de 2015 assenta, já em seu artigo 1º, que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas de fundamento da Constituição da República Federativa do Brasil”, indiciando, assim, a adesão do legislador processual às premissas metodológicas, adotadas pelo formalismo-valorativo, quanto a caracterizar-se o processo como direito fundamental do cidadão e como ambiente de criação do Direito. Além disso, a novatio legis, embora não rejeite a flexibilização do direito processual como técnica para obter a efetivação do direito material deduzido em juízo e para induzir a realização da justiça no processo (essa que é uma proposta tanto do instrumentalismo quanto do formalismo-valorativo), não parece colocar a jurisdição ao centro da Teoria do Processo, como propõem os instrumentalistas brasileiros90. Tal se infere, primariamente, da veiculação no novo código processual de opção político-normativa pela imposição aos órgãos jurisdicionais que sigam, quando da fundamentação de suas decisões, os precedentes invocados pelas partes (art. 489, p. 1º, VI), que uniformizem a sua jurisprudência com o propósito de mantê-la estável, íntegra e coerente (art. 926), inclusive por meio da edição de súmulas (art. 926, p. 1º), e que observem as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, os acórdãos proferidos em incidente de assunção de competência ou de resolução de 88 Quanto ao particular, cf., por todos: MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. op. cit., p. 72-73. 89 Ou, como sustentei alhures (MADUREIRA, Claudio. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça. op. cit., 209-214/passim), como um microssistema do ambiente comunicativo descrito por Habermas no campo da Filosofia do Direito. Sobre o assunto, ler também: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. v. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 49-52/passim e 140-143/passim. 90 A propósito, cf., por todos: DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. op. cit., p. 81. 275 demandas/recursos repetitivos, as súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e as orientações do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados (art. 927). Essas inovações legislativas complementam escolhas normativas feitas pelo legislador ainda na vigência do Código de 1973, quando previu, como forma de conferir celeridade à resolução das contendas, a possibilidade de julgamento dos processos por seus Relatores nos Tribunais (art. 932, IV e V e art. 1.011, I do Código de 2015 e art. 557 e p. 1º-A do Código de 1973), a sentença de improcedência liminar (art. 332 do Código de 2015 e art. 285-A do Código de 1973) e a sistemática de julgamento de recursos repetitivos (art. 1.035, pp. 5º e 8º, art. 1.036 e p. 1º, art. 1.039 e p. único, art. 1.040, I e art. 1.041 e pp. 1º e 2º do Código de 2015 e arts. 543- A, 543-B e 543-C do Código de 1973), todas ancoradas na premissa segundo a qual o direito deve ser aplicado com base na jurisprudência dos Tribunais91. Essas alterações normativas revelam, conforme Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, a opção do legislador brasileiro pela aplicação entre nós da teoria dos precedentes92. Disso resulta que a realização do Direito não mais observa a fórmula geral segundo a qual compete aos juízes aplicar no processo um direito material preexistente, pressupondo, em rigor, a adoção de metódica tópico-problemática93, num contexto em que não apenas a lei, mas também a dogmática e os precedentes compõem os catálogos tópicos empregados pelos intérpretes (aplicadores) para a construção das normas concretas que solucionarão os litígios94. Essa opção político-normativa é perfeitamente compatível com a constatação, feita no plano da Ciência, de que o Direito de nosso tempo se tornou mais flexível, ou talvez mais 91 Cumpre recobrar, ao ensejo, a lição de Dworkin, para quem os juízes, quando decidem casos particulares, estabelecem regras gerais que de algum modo se propõem a beneficiar a comunidade, devendo estar claro que outros juízes, quando vierem a decidir casos posteriores, devem aplicar-lhes essas regras (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 172). Dworkin atribui essa imposição a algo por ele designado como “a força gravitacional de um precedente”, que “pode ser explicada por um apelo, não à sabedoria da implementação de leis promulgadas, mas à equidade que está em tratar os casos semelhantes do mesmo modo”, dispondo, adiante, que “um precedente é um relato de uma decisão política anterior” e que “o próprio fato dessa decisão, enquanto fragmento da história política, oferece alguma razão para se decidir outros casos de maneira similar” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. op. cit., p. 176). 92 DIDIER JÚNIOR, Fredie, BRAGA, Paula Sarno e OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processo civil, v. 2. Salvador: Juspodivm, 2008. p. 348. 93 Cf.: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. op. cit.; ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. op. cit., p. 88; e VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. op. cit.), 94 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. op. cit., p. 88. 276 “suave”, como sugere Gustavo Zagrebelsky95, de modo que, conforme variam os intérpretes, a interpretação do Direito pode resultar em diferentes soluções jurídicas para um mesmo problema. Na precisa alegoria construída por Eros Roberto Grau, “dá-se na interpretação de textos normativos algo análogo ao que se passa na interpretação musical”96. Grau observa, quanto a esse pormenor, que “não há uma única interpretação correta (exata) da Sexta Sinfonia de Beethoven”, aduzindo, ao ensejo, que “a Pastoral regida por Toscano, com a Sinfônica de Milão, é diferente da Pastoral regida por Von Karajan, com a Filarmônica de Berlim”, e que “não obstante uma seja mais romântica, mais derramada, a outra mais longilínea, as duas são autênticas - e corretas”97. Com essas considerações, esse professor paulista rejeita “a existência de uma única resposta correta (verdadeira, portanto) para o caso jurídico - ainda que o intérprete esteja, através dos princípios, vinculado pelo sistema jurídico”98. Essa constatação refuta a suposição de que o Direito aplicado aos casos concretos se apresenta como imagem espectral do direito positivado nos textos legais. Disso decorre que as decisões jurídicas proferidas no processo não se encontram legitimadas, sob o ponto de vista democrático, pela tão só circunstância de aplicarem textos normativos previamente aprovados pelo Parlamento, onde se reúnem os legítimos representantes do povo; necessitando, assim, legitimar-se também no contexto em que são produzidas; o que impõe a atuação de julgadores que sejam paritários no diálogo e assimétricos apenas na decisão, de modo a que o processo se apresente como ambiente dialógico, que além de prevenir o arbítrio estatal no campo da aplicação do Direito, fomente as condições necessárias a que as partes reconheçam a justeza da decisão prolatada; como postulam os adeptos do formalismo-valorativo99. Esse processo dialógico projetado pelos formalistas-valorativos foi adotado pelo legislador do Código de 2015; que estabelece, entre outras coisas, que considera desprovido de regular fundamentação o ato decisório (seja ele uma decisão, uma sentença ou um acórdão) que não enfrentar todos os fundamentos deduzidos pelas partes no processo e que possam infirmar a conclusão adotada no julgamento (art. 489, p. 1º, IV), ou que deixar de 95 ZAGREBELSKY, Gustavo. Il Diritto Mitte - Legge, Diritti, Giustizia. Nuova edizione. Torino: Einaudi, 1992. 96 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 36. 97 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. op. cit., p. 36. 98 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. op. cit., p. 36. 99 MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. op. cit., p. 72-73. 277 seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, que seja aplicável ao caso e que não tenha sido superado (art. 489, p. 1º, VI); e que prescreve que o desatendimento a essas imposições normativas suscita a caracterização de omissão do julgador, a autorizar a oportuna oposição de embargos declaratórios (art. 1.022, p. único, II). Tamanha foi a preocupação do legislador em conferir semelhante caráter dialético ao processo civil brasileiro que vedou ao Poder Judiciário decidir sobre fundamentos (art. 10) e fatos (art. 473, p. único) sobre as quais não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, orientando aos julgadores que as ouçam antes de proferir decisão que os considere. Esse processo dialógico concebido pelo Código de 2015 é claramente incompatível com proposição instrumentalista quanto a figurar a jurisdição ao centro da Teoria do Processo, seja porque se fundamenta na compreensão (assimilada pelo legislador processual) de que o Direito aplicado aos casos concretos não necessariamente corresponde ao direito positivado nos textos legais (na medida em que é resultado de atividade criativa desenvolvida pelos intérpretes no processo judicial100), seja porque, posto isso, as decisões jurídicas proferidas em seu corpo precisam ser legitimadas pela efetiva participação das partes na formação do juízo. E por isso se apresenta, como postulam os formalistas-valorativos, como direito fundamental do cidadão, precisamente porque se qualifica como ambiente de criação do Direito. Essas constatações, quando conjugadas, orientam que o processo (e não a jurisdição) seja colocado ao centro da Teoria. Delas resulta a inauguração de uma nova fase metodológica no Direito Processual Civil Brasileiro, em substituição à fase instrumentalista, designada por Daniel Mitidiero (em referência à doutrina concebida no seio da escola processual gaúcha por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira) como formalismo-valorativo. CONCLUSÃO 100 Quanto a isso, ou se admite, como premissa teórica, que os juízes aplicam no processo um direito material preexistente, e que por isso suas decisões encontram aprioristicamente legitimadas pela circunstância dos textos legais aplicados terem sido aprovados pelo Parlamento; ou se postula (como parece ter feito o legislador processual) que o Direito aplicado aos fatos da vida é mais do que isso, porque também deve ter em consideração as peculiaridades dos casos concretos e a própria influência dos valores no processo de seleção e interpretação das normas abstratas a eles aplicáveis. Ao ensejo, cf.: MADUREIRA, Claudio. Recasens Siches e a aplicação do direito a partir da interação entre norma, fato e valor. op. cit. 278 Neste artigo, procurou-se induzir a compreensão de que o legislador processual, quando concebeu o Código de Processo Civil de 2015, aderiu às premissas teóricas e às técnicas de atuação propostas pelo formalismo-valorativo, doutrina processual concebida pela escola processual gaúcha, que se distingue do instrumentalismo porque qualifica o processo como direito fundamental do cidadão e como ambiente de criação do Direito, e porque, em vista dessas premissas, propõe que o processo (e não a jurisdição) seja colocado ao centro da Teoria. Essa constatação indica, ainda, que Daniel Mitidiero tinha razão ao afirmar que o formalismo-valorativo descreve, como doutrina jurídica, uma quarta fase metodológica do processo, que, nessa perspectiva, substitui o instrumentalismo, porque apresenta “uma nova visão metodológica, uma nova maneira de pensar o direito processual civil, fruto de nossa evolução cultural”101. Todavia, não há, aqui, a pretensão de apresentar respostas definitivas às indagações formuladas em seu corpo, ou construir única via interpretativa capaz de solucionar os problemas de que se ocupa. O que se almeja, em rigor, é que essas breves considerações sobre o tema possam suscitar no futuro questionamentos e debates tendentes à sua consolidação no plano da Ciência, com reflexos positivos para a resolução das contendas suscitadas no campo da aplicação do Direito. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. ______. 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